Prenuncio primeiro sobre a morte de Baltazar

Saía a cortina de fumo da água. Cerca da hora em que o dia passa o testemunho à sempre emancipada madrugada,e a figura cerrou-se em si. Ouvia-se a relva húmida da geada e cheirava no ar ao cântico sonolento da última estrela que não se avista da cidade. Bermudas meio justas, a destacar o joelho, de padrão miami praia. Um sol já escurecido e umas palmeiras, em meados da colecção primavera/verão, desgastadas já pelo vento que continuamente lhes raspava a pele.

O percurso do herói começou cedo, e isso concede-lhe que não liguemos á ausência de roupa no tronco. Alguns arranhões nas costas, e as bochechas vermelhas e inchadas. Talvez exista igualmente uma marca de luta por cima de um dos olhos que quase passava despercebida. Na edição primeira do manual do contador de histórias não era explicíto que tivessemos de o destacar e, em algumas casuais situações, o narrador confessa sentir-se perdido na linha da trama.

E assim se encontrava o nosso herói. Perdido. Preso num pedacinho de um momento, sem um mapa mestre que lhe indique a saída. O mesmo mapa que lhe faltou no inicio. Aquele mapa que não o empurrou para fora do mar que dele fez um naufrágo, que lhe afogou os sentidos, corrompendo-lhe a alma de imensidão e luz, e agora o pôs à mercê do julgamento sempre eterno dos pobres de espírito. Aqui não se ouvem trompetes, nem toca o requiem, nem uma única nota se ouve. Aqui não há mais luz, não há mais sombras nem nébulas. O cântico das sereias de afrodite chegou para lavar o que se tingiu no esgotamento. Os deslavados cardumes da ignorância levaram a melhor, porque pela carneirada do mundo o nosso herói se mostrou. Vidente e sábio, e agora assim.

Quando o narrador abraçou o púlpito não acompanhou a trama. Falou da história eterna que nunca deixa de ser contada. De como os seus narradores se permutam para manter em vida o que queima no conto. E cansado porque a voz o agoniava disse, ainda, que em cinco parárafos poderiamos correr todas as histórias, ou, se quiséssemos, contar a apenas a história do herói que ousou puxar o gatilho contra si no cair da cortina, e do público que aplaudíu de pé a aparição do nunca mais, com o vervor entusiasta de sempre.

A cortina de fumo emergente da água encerrou o acto único do capítulo de pedra. Os joelhos caídos no chão foram o último súspiro de uma alma que se afunda nas mais longínquas promiscuidades do nunca emancipado amanhecer. E quando os raios do sol tocaram o chão em sangue, evaporou-se a cortina de fumo, adormeceram-se os cânticos oscilantes de afrodite. O público trancou a sala onde agora repousa o silêncio, e o narrador tocou de uma só vez o ponto final na trama. Mas história eterna que nunca deixa de se contar não parou. Enquanto Baltazar dormia.

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