Berro de Natal - parte 3

"Oxalá não venha nunca à sublime cabeça de Deus a ideia de viajar um dia a estas paragens para certificar-se" da felicidade com que as suas ovelhas comemoram o nascimento do seu filho mais próximo. No entanto, importa ter em conta que, para uma ovelha do rebanho, a exposição da sua vontade e do seu sentimento torna-lá-ia negra, enquanto o diabo pisca um olho, e por isso existe uma grande probabilidade de Deus ver como as santas ovelhinhas estão a cumprir de um modo tão satisfatório o sagrado ritual de mais uma época natalícia.

Se porém o dito Deus me perguntasse se deveria prosseguir com essa enorme vontade de avaliar o grau de contentamento da generalidade dos seres humanos para com esta ocasião e, "não fazendo caso das minhas recomendações ou conselhos", antagónicos à sua nobre disponibilidade para esta viagem, persistisse no propósito de vir até aqui, estou certo de que reconheceria que, apesar dos seus conhecidos atributos de omnisciência e omnipotência, mil vezes exaltados em todas as línguas e dialectos, deixou que se cometessem, na estruturação deste milenar projecto de "arrebanhamento" de ovelhas, tantos e tão grosseiros erros de previsão.

Isto porque o diabo não só piscou o olho, como de tanto o piscar durante o ano apareceu-lhe o sono e adormeceu. Deixou de se preocupar com o que nós aqui fazemos, estando certo de que nada fizemos para que ele tenha de acordar e tentar persuadir-nos de novo para o tortuoso caminho do erro, do pecado e do infernal anti-divino.

O natal é das crianças? ou é das famílias? é que há crianças sem família, e famílias sem crianças, e eu arrisco-me a dizer que não dá para ser dos dois, porque as obrigações logísticas são de tal forma que as crianças não podem estar ao comando, e muito menos podem as famílias, por isso é que, à porta fechada, não vá alguém ver, o natal enquanto arranjinho dá sempre alguma raia de que toda a gente se vai lembrar no ano a seguir, quando já todos se tiverem esquecido do propósito que os levou ali. Até porque em muitos casos não há propósito, a não ser porque é dia 25 de Dezembro...mas isso só por si não devia contar.

Um outro indicador (analisado pela primeira vez este ano) de que este natal foi um sucesso generalizado foi a taxa de pessoas online no chat e a deixarem posts no facebook. Pela hora da missa do galo estava tudo a rezar virado para o ecrã e postar "por favor, parem de me mandar mensagens de natal, porque já tenho a caixa cheia, o dedo polegar em sangue e ainda tenho de sacar o último episódio do Weeds para ver quando for para a cama." Os que infelizmente não podiam estar perto do seu parente mais próximo (o computador) estavam com o iphone no bolso a pensar, espero que isto apite agora para ir ali ao quintal outra vez fumar uma cigarrada e deixar mais uns comments no perfil do António que está a dizer que se cagou todo depois de comer o bolo rei, porque aqui na sala de estar, apesar da lareira e das prendas na árvore, pouco mais tenho a dizer. E por fim ainda há os que, não estavam ao pc nem com o iphone no bolso, porque estavam a espera que o ultimo familiar ainda perdido algures na cozinha se juntasse ao rebanho para se dar as prendas, nas quais estava o tão desejado iphone que lhe vai agora permitir ligar-se ao mundo. Facto que perspectiva uma natal de 2011 muito mais tranquilo.

A esta hora o natal está a acabar, e já se prepara a grande maioria para a tradicional festa da noite do dia de natal, em que toda a gente sai para encontrar na noite a redenção aos pecados que se cometeram durante estes últimos dois dias. É preciso carregar a carteira com os envelopes que saíram da árvore com o nosso nome no verso e com notas no interior, por as botas, o casaco e o perfume novo que recebemos do tio que vemos para o ano mas que é um porreiro, e não dá para nos esquecermos do iphone, que isto do natal acaba mas a rede social jamais...por falar em rede social, devem estar ai a rebentar post's do pessoal a mostrar as prendas novas. Ufa que agora já há iphone para ver o que os outros receberam em directo quando estiver na noite a matar as calorias a mais que hoje ingeri.

Enfim, matemos a impotência que nos obriga a sorrir mesmo não querendo e exaltemos o espírito das compras e dos bolos. Amen